Tom Valença
A velha
curandeira criou fama de ser uma especialista em ervas medicinais, pois fazia chás e infusões que curavam males do
corpo e da alma. Vivia só sem nenhum luxo, mas era sempre muito procurada por
quem morava nas redondezas e até por quem vinha de longe, muitas vezes só para
consulta-la. Certa feita, ao procurar
na mata fechada uma raiz raríssima, foi picada por uma cobra. Sem ter a quem recorrer, a ágil mulher ainda
tentou cortar o pedaço de carne contaminado mas já era tarde; os músculos não
obedeceram e ela sentiu que não tinha muito tempo até ser dominada pelo
pânico. Correu em direção ao rio, mas
sua visão turvada só conseguia fixar a
imagem do réptil se afastando sorrateiramente.
Vencida pelo imponderável, seu corpo tombou a beira do córrego. Seu olho esquerdo ficou aberto e emerso
enquanto o direito fechou-se sob a água.
Assim que as convulsões permitiram, um dos olhos foi possuído por uma
visão:
O
homem acende a vela
o
vento apaga a chama
o
tempo dispersa o vento
a história
divide o tempo
O
futuro não tem história.
No
presente,
a
pobreza gera incerteza
e
ainda se apega a fé.
A fé
extingue o buraco
o buraco é fruto da reta
a
reta que termina em curva
na
chuva a dançarina nua.
A
dançarina é a primeira a acordar
acordar
não garante quem dorme
os
que dormem se secam na chuva
a
chuva que lava o espelho
o
espelho que inverte e verte.
Inverso
da dor é orgasmo
o
orgasmo que faz pouco do verme
o
verme está dentro do prato
o
prato que foi lavado a sangue.
O
sangue se mistura a água
da
vida que sonha e passa
passa
e deixa lá fora
a
visita que bate a porta.
A
porta se abre ao ladrão
o
ladrão pede esmola ao doutor
o
doutor recomenda: silêncio
o
silêncio mata mais que veneno
veneno,
champanhe, cálix bento.
Um grito único
e infinitamente contínuo se espalhou pela mata. Toda a natureza parou para
ouvir. Atordoada e ainda sem fôlego, a curandeira se ergueu num esforço
supremo. Tão logo saiu da água olhou para o local da picada. Seus olhos desfocados tornam-se também confusos
ao encontrar apenas uma borboleta tatuada no local.
do sol.
[1] Episódio do livro Universos
Profanos. Rio de Janeiro, Papel Virtual Editora, 2001; versão digital e impressa em: www.papelvirtual.com.br.