A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos

Márcia Freire[1]

 

O novo livro da antropóloga Beatriz Caiuby Labate faz uma instigante abordagem das modalidades contemporâneas do uso da ayahuasca no Brasil

 

A antropóloga Beatriz Caiuby Labate é uma voz altiva e ativa no universo da pesquisa acadêmica brasileira sobre o uso das plantas de poder e, em especial, da ayahuasca.[2] Aos 33 anos, Bia Labate  já trilhou boa parte do vasto território-alvo de sua pesquisa e, literalmente, colocou o pé na estrada, nos últimos nove anos, viajando pelo Brasil, Peru, Colômbia, México e África. 

Suas andanças, em busca da gênese e da história de distintas culturas e agrupamentos que fazem uso tradicional ou contemporâneo das plantas psicoativas, lhe renderam a co-organização do livro O Uso Ritual da Ayahuasca (Mercado de Letras, 2002), onde conseguiu reunir, numa edição virtuosa, a palavra de xamãs, vegetalistas, etnólogos, cientistas sociais e psiconautas (pesquisadores empíricos e científicos de psicoativos), tornando-se referência no campo de estudos sobre as religiosidades urbanas contemporâneas e o psicodelismo.

Seu mais recente livro, A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos (também editado pelo Mercado de Letras, 2004), recebeu o prêmio de melhor trabalho de mestrado, em 2000, pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais ANPOCS. Aqui, Bia Labate amplia seu vôo com precisão e adentra no mundo dos “neo-ayahuasqueiros” - grupos ou indivíduos que aliam o consumo da ayahuasca com diversas técnicas e terapias corporais e de auto-conhecimento -, vertendo sua observação participante num rio-narrativa caudaloso, no melhor estilo literário.

A reinvenção....” é uma panorâmica arrojada sobre o universo ayahuasqueiro brasileiro, analisando as extensões, dinâmicas e implicações dos novos usos desta bebida psicoativa, mantendo o foco principal nas modalidades mais recentes de consumo nos centros urbanos. A autora-pesquisadora nos leva a conhecer esta emergente e quase anônima urbis tribo, através de um precioso mapa que vai sendo desenhado à medida que se faz a travessia dessas paragens onde, quase sempre, as fronteiras não terminam em floresta e riacho doce.

Comentar “A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos” não é algo que se faça num fôlego só. Antes, faço aqui um breviário que não substitui a leitura (a qual, aliás, recomendo), e espero que possa oferecer um vislumbre da urdidura deste tecido tão bem tramado por Bia Labate.

A partir da introdução, a autora compartilha com o leitor o percurso através do qual nasceu e desenvolveu sua pesquisa; disserta sobre o papel e os conflitos do pesquisador-observador no estudo antropológico dos enteógenos[3], faz emergir questões centrais acerca da relação entre religião e ciência e traça uma espécie de mapa de campo das religiões ayahuasqueiras brasileiras, discutindo seus aspectos cosmológicos, doutrinários e litúrgicos. Ao final da análise, fornece uma excelente referência de fontes orais e bibliográficas de cada grupo.

Os três primeiros capítulos são dedicados ao principal objeto de estudo do livro - o Caminho do Coração – nome que designa genericamente as atividades lideradas pelo terapeuta holístico Janderson e em particular os rituais nos quais usa daime. A formação eclética de Janderson, desde as práticas espiritualistas e profissionais até sua própria trajetória no campo ayahuasqueiro, se reflete diretamente na proposta do centro terapêutico que ele coordena, na cidade de São Paulo, espaço privilegiado para onde converge e proporciona, a aproximadamente 120 pessoas, uma gama variada de técnicas e terapias alternativas, como meditação oriental, ioga, rebirthing (renascimento), massagem, grito primal etc., além de trabalhos com daime (dentro e fora do consultório).

A história do centro terapêutico, o perfil de seus freqüentadores, as terapias e as biografias de Janderson e seus principais auxiliares, os rituais e as cosmologias do Caminho do Coração são minuciosamente descritos. A autora constrói sua narrativa mesclando  descrição e analise, comentários e interpretações,  sobre as origens da Nova Era, o uso terapêutico e a comercialização do daime, a questão da legitimidade e da intolerância da sociedade e entre os grupos, a polarização entre o sagrado e o profano, o tradicional e o moderno, entre outros temas.

No que poderíamos chamar de segunda parte do livro, Bia Labate abre o leque, introduz e contextualiza novas modalidades de trabalho de outros grupos neo-ayahuasqueiros que se articulam e participam da rede urbana de consumo da ayahuasca, nas linhas terapêutica, assistencial, artística, da experimentação científica ou do turismo psicodélico, e destaca que seu objetivo aqui é principalmente fornecer um registro impressionista destas tendências contemporâneas, mais que realizar uma análise sistemática de cada caso particular.

A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos é uma espécie de passeio na floresta onde não falta  lirismo e algumas surpresas pelo caminho. O prazer da caminhada teria sido maior se, em vários trechos do percurso, Bia não tivesse insistido tanto em construir inúmeras pontes para manter em evidência o líder e terapeuta Janderson,  recém-convertido, aliás, em guru, denominado agora Prem Baba.

Se, como disse a autora, na conclusão – onde refaz e inter-relaciona as principais idéias discutidas - o objetivo deste livro “foi fornecer uma contribuição para a compreensão do campo ayahuasqueiro brasileiro em geral e, em particular, lançar luzes sobre a natureza e a dinâmica de determinados usos urbanos da ayahuasca que se situam nos limites desse campo”, sua meta foi alcançada com talento.

 

            Bia Labate ,  autora de “A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos

                                              visita a comunidade do Matutu

 

No final de 2004, após ter lançado o seu livro na XXVIII Reunião da ANPOCS (o maior  encontro anual de cientistas sociais do país), em Caxambu, a antropóloga Bia Labate retornou pela segunda vez ao Matutu, no sul de Minas Gerais, e apresentou aos moradores da comunidade o resultado de sua mais recente pesquisa, transformada em livro, A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos (Mercado de Letras, 2004).

Na sua passagem-relâmpago de três dias pelo Matutu, Bia Labate fez uma palestra, conversou com moradores, participou de um encontro comunitário e um ritual com daime, visitou áreas de cultivo, do cipó jagube e do arbusto chacrona, e locais de feitio e acondicionamento do daime ,  além de entrevistar o líder e coordenador do grupo, Guilherme França. Apesar de conduzir a entrevista num estilo bastante descontraído, Bia deu mostra suficiente do seu profissionalismo, principalmente no momento em que estimulou o entrevistado a reconstruir sua história pessoal e sua convivência com o Padrinho Sebastião, além de responder questões-chave sobre os processos de organização da comunidade, liderança social e religiosa, o ritual com o daime no contexto local, o perfil do grupo, etc.

Em sua palestra, no templo da comunidade, Bia também mostrou-se uma excelente contadora de histórias e, ao longo de duas horas, conseguiu manter a atenção e um interesse eletrizante do público bastante heterogêneo que incluía jovens, crianças e visitantes até antigos daimistas e ayahuasqueiros. Com sua fala assertiva e cheia de semi-tons e intenções, a antropóloga falou da trajetória, do propósito e do universo de sua pesquisa e de sua investigação participante, respondeu perguntas e, a pedidos, contou fatos curiosos e corriqueiros sobre a vida do Mestre Irineu e seus contemporâneos.

 Os que a ouviram, naquele fim de tarde após a oração de domingo, certamente sentiram que a voragem de suas palavras, convertida em palestra, provocou ressonâncias. Para alguns, empatia, para outros, surpresa e até um certo desconforto, mas uma coisa é certa: é impossível manter-se indiferente diante de algo que não se extingue ao acender das luzes ou quando vemos na tela o letreiro “fim”. Particularmente, acompanhar  Bia Labate em sua visita ao Matutu, foi, no mínimo, um sopro benfazejo na mesmice do cotidiano.

 

Publicada em: http://www.terramistica.com.br/index.php?add=Artigos&file=article&sid=344&ch=1

 

 

 

 



[1] Jornalista, educadora e membro do Centro de Estudos Espirituais Ayahuasca (Matutu). Participa de rituais com o Daime há 14 anos. Mora na comunidade rural da Reserva Matutu e trabalha com projetos ambientais e educativos.

 

[2] Bebida composta pelo cipó Banisteriopsis caapi e pela folha Psychotria viridis, também conhecida como daime, vegetal, yagé, caapi, entre outros nomes de origem indígena ou mestiça).

[3] Segundo o antropólogo Edward MacRae (Guiado pela Lua. Xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto do Santo Daime. São Paulo, Brasiliense, 1992), enteógeno deriva do grego antigo entheos que significa “Deus dentro”; o neologismo enteógeno significaria então “o que leva o divino para dentro de si”.