Intervenção – NEIP – Lançamento Livro A Reinvenção do
Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos, de Beatriz Labate
Lida por Thiago Rodrigues
São Paulo, Livraria Cultura, 11 de agosto de 2004
A quem pertence nossas experiências, nossas mentes, nossos
desejos? Quem tem o poder de regular nossos trajetos, pautar nossas buscas
interiores? Nossa vida e nossas questões são, de fato, nossas? Há cerca de um
século a maioria dos Estados no mundo passou a afirmar que esses nossos
percursos não eram somente nossos, mas diziam respeito a eles também. Em nome
do “bem-estar e da segurança gerais”, nascer, morrer, viver, procriar,
relacionar-se – por excelência, acontecimentos humanos – transformaram-se em
alvo de um controle externo, político, totalizante. Experimentar a própria
existência deixou de ser algo dependente das escolhas individuais ou dos grupos
de sociabilidade locais (família, comunidade, grupos religiosos). A perseguição
legal a inúmeras substâncias psicoativas buscou sua justificativa em argumentos
sociais e econômicos que sempre esconderam mal suas motivações morais. A
obediência aos “valores elementares” da nação, atitude fundamental para se
conseguir uma padronização de condutas, exige que as práticas tidas como
incorretas, imorais e desviantes sejam caçadas, atacadas, suprimidas. Dentre os
atos tidos como mais vis e instabilizadores, nossa sociedade elegeu as
excursões psíquicas, as experiências lisérgicas, as sensações quimicamente
induzidas.
Não
importa a meta visada: os usos de psicoativos com fins religiosos, de
auto-conhecimento ou de prazer hedonista têm, para o Estado e para a
“sociedade” por ele representada, a mesma importância e a mesma ameaça. São
todos esses caminhos perigosos, anormais. E, hoje, mais do que perigosos e
anormais, são ilegais ou em constante ameaça de proibição. A condenação moral
ganhou status de condenação legal o que poder resultar na captura e
incriminação de pessoas interessadas em dispor de seus corpos e de suas mentes.
Uma categoria específica de drogas – que se
distingue dos inebriantes (como o álcool), dos excitantes (como o café e a
cocaína), ou dos sedativos (como o ópio) –, conhecida como “alucinógenos”,
“enteógenos” ou “psicodélicos” (como o LSD, o peiote, os cogumelos, a iboga e a
ayahuasca) tem sido especialmente perseguida. Seus efeitos, chamados por Ludwig
Lewin, de “fantásticos”, muitas vezes relacionados ao fenômeno religioso e à
experiência mística, problematizam as fronteiras entre realidade, ilusão,
razão, imaginação, loucura, vigília, sonho, vida e morte. O imenso arsenal que
a farmacoquímica coloca ao alcance da humanidade abre espaço para um novo campo
epistemológico.
O
objetivo central da Proibição às drogas é bani-las para sempre do convívio
humano. Sabemos, no entanto, que os homens relacionam-se com substâncias
alteradoras de consciência há milênios, encontrando em todos os casos modos
para gerenciar usos e abusos. Apenas há um século busca-se a “destruição
definitiva” desses hábitos. Busca que consegue somente potencializar usos
nocivos, além de literalmente produzir um enorme e possante mercado ilícito: o
narcotráfico. Os anseios individuais e as manifestações culturais relacionadas
ao uso de psicoativos caem, desse modo, na vala comum dos “atos espúrios” que
devem ser perseguidos por um Estado que se arvora ser o defensor da sociedade.
O
intolerável dessa situação é o denominador comum que sustenta o NEIP, Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, grupo de pesquisas e de
intervenção política e intelectual que congrega estudiosos da questão das
drogas no mundo contemporâneo provenientes das mais diversas perspectivas. Os
olhares da antropologia, história, direito, sociologia e ciência política têm
um solo compartilhado: a crítica feroz ao proibicionismo e a defesa ética das
experiências individuais e coletivas com psicoativos, entendidas como atitudes
humanas e sociais legítimas. O alvo do NEIP é a Proibição e sua missão é
problematizar o tema da ilegalidade das drogas, chamando a atenção para os
efeitos políticos e sociais do combate a tais substâncias que é, de fato, um
combate direcionado a grupos sociais, hábitos individuais, práticas seculares.
Desse ataque nasce a posição da defesa de que homens e mulheres possam eleger
suas pautas de utilização de psicoativos conforme suas necessidades existenciais.
O NEIP divulga suas posições e resultados de pesquisa por
meio da produção de seus membros e, também, pela realização de seminários e
atividades como o curso de extensão “Drogas: perspectivas em ciências humanas”,
apresentado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP no
segundo semestre de 2003. O Núcleo mantém um site no endereço
www.neip.hpg.com.br no qual encontram-se artigos, resenhas, entrevistas e
anotações de seus pesquisadores; esta página está aberta a receber colaborações
de investigadores do tema que estejam afinados aos pressupostos gerais do
grupo. Aberto, também, está o próprio NEIP no sentido de encontrar novos
parceiros e interlocutores dispostos a adentrar nessa guerra permanente que nos
instiga, mobiliza e seduz: uma guerra travada em torno da urgência em
sublevar-se ética e esteticamente, abrindo espaços de liberdade e tomando para
si as rédeas de nossa existência.