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Resenha crítica de “O Uso Ritual da Ayahuasca”, organizado por Beatriz Caiuby Labate e
Wladimyr Sena Araújo. Campinas: Mercado das Letras. 2002
Saybrook Graduate
School and Research Center
São Francisco, EUA.
mercante@excite.com
O livro é um trabalho de fôlego. Reúne pesquisadores importantes, tanto brasileiros quanto estrangeiros. Cobre numa tacada só todos os campos onde se desenvolvem pesquisas relativas à ayahuasca. De índios, passando por caboclos e pelo vegetalismo, indo até as religiões institucionalizadas, passando ainda pela psicologia, e chegando ao ponto onde seus estudos se iniciaram: os estudos farmacológicos. Esta é exatamente a sua grande contribuição: antes do livro o que tínhamos era uma quantidade significativa de textos dispersos através das diversas áreas da antropologia, o que acabava por diluir o conhecimento gerado com o auxílio das pesquisas sobre a ayahuasca. O que surge agora é uma mostra de que a ayahuasca em si e por si só constitui um campo de estudo, na medida em que não existe mais apenas um diálogo sobre a ayahuasca nas demais áreas da antropologia, mas que fica claramente consolidado no livro um diálogo “interno” neste novo campo, envolvendo pesquisadores com origens bastante distintas. A única ausência significativa ficaria por conta de material sobre os diversos grupos que atualmente consomem a ayahuasca em meio urbano, sem contudo estar filiado a nenhuma das religiões que utilizam o chá.
Em relação à abordagem mais voltada para as “hard sciences”, este livro apresenta ao público uma coletânea de artigos onde são feitas contribuições significativas no sentido de se perceber a dinânica física do chá. Importante ressaltar que surgem pela primeira vez em português relatórios envolvendo o “Projeto Hoasca”, uma importante série de pesquisas levadas a cabo por grupo significativo de pesquisadores (onde se incluem C. Grob, D. McKenna, J. Callaway, R. Strassman, entre outros) e apoiado pela União do Vegetal. Esta pesquisa envolve basicamente aspectos biomédicos e fisiológicos da utilização a longo prazo do chá.
O livro se inicia com um conjunto de artigos (ver: Luz, Langdon, Keifenhein e Zaluaga) tratando de um tema, sem o qual eu creio nenhum trabalho sobre a ayahuasca pode ser bem sucedido: a busca de se compreender como o chá é utilizado na sua fonte, em seu(s) locais de origem entre os povos indígenas. Este referencial é fundamental para que se perceba a base sobre a qual, por exemplo, todas as religiões existentes hoje que utilizam a ayahuasca foram construídas. Ainda que por vezes o simbolismo pertencente à esta base não seja óbvio, ele é fundamental, no sentido mesmo de pertencer aos alicerces de todos os demais usos do chá. Tal influência seria sentida na União do Vegetal, por exemplo, nas chamadas realizadas durante cada sessão. No Santo Daime, a sentiríamos no bailado e no uso dos maracás, e na Barquinha através dos Encantos.
É necessário realçar a importância de se entender o chá dentro de comunidades indígenas. Este entendimento será certamente útil no momento em que se for trabalhar seja em sociedades complexas, seja farmacoquimicamente, pois estas comunidades (as indígenas) são as que a mais tempo lidam com o chá, e certamente serão as que melhor poderão fornecer informações sobre a bebida e seus efeitos.
Vejamos por exemplo a questão do xamanismo dentro das religiões que utilizam a ayahuasca. Esta discussão é um dos marcos iniciais dos estudos que envolvem o Santo Daime. Alguns autores lançaram mão de conceitos como Xamanismo Coletivo e Praxis Xamânica visando auxiliar no processo de interpretação desta religião. Um outro tema que já foi tratado exaustivamente dentro de grupos indígenas, e que permeia vários trabalhos a respeito da ayahuasca é a questão da cura: em que níveis ocorre, como é o processo de cura, e como ela é percebida pelos doentes e curadores. No livro a cura aparece de forma mais explícita no artigo de Pelaez e Mabit, mas ela é uma constante dificilmente dissociada dos rituais como um todo: a função terapêutica do chá é plenamente reconhecida entre os índios, e não poderia ser diferente dentro das religiões que utilizam a ayahuasca.
No livro vieram à tona várias vozes tratando das origens das diversas religiões (ver por exemplo Cemin e Monteiro da Silva), com uma constante busca de detalhes que só vêm a enriquecer o próprio campo. Detalhes estes que começam a ir além das origem da própria religião, e que partem em direção aos seus fundadores, como podemos ver no artigo de Goulart, sobre Mestre Irineu (fundador do Santo Daime), e no de Brissac, ao tratar de Mestre Gabriel (fundador da União do Vegetal).
Contudo uma incógnita ainda encobre Frei Danei, fundador da Barquinha. Sena Araújo aparece como um pesquisador solitário desta religião. A Barquinha deveria ser um alvo futuro de pesquisas, e aqui posso me incluir. Trabalho com este tema atualmente em um projeto de doutorado no Saybrook Graduate School and Research Center, em São Francisco, Califórnia.
Mas um bom trabalho antropológico não se faz sem uma boa dose de senso crítico. Esta postura crítica aparece de forma mais contundente nos artigos de MacRae, Balzer e Andrade. Aqui são reexaminadas questões sérias e de base relativas às religiões que utilizam a ayahuasca de forma mais direta. Tais críticas abrangem temas como a postura dessas religiões em relação umas às outras, em relação ao “mundo exterior” a elas mesmas, e passam ainda por um exame agudo da maneira mesma dessas religiões conduzirem seus rituais.
O texto de MacRae é um quase manifesto pelo pedido de tolerância entre as religiões, particularmente no que toca ao Santo Daime e União do Vegetal. O fato de o Santo Daime utilizar outras plantas psicoativas nos seus rituais é alvo de críticas severas por parte da UDV, que muitas vezes geraria uma postura preconceituosa, centralizadora e intolerante por parte desta última religião. Isso veio a tona de forma bastante explícita em um protesto formal apresentado em 4 de setembro de 2002 (portanto, depois da publicação do livro) em Vara Cível de Brasília contra o artigo de Andrade na coletânea. Este autor se limita a comentar alguns aspectos do mito de criação da Hoasca, dentro de uma interpretação intelectual, que em nada ameaça os aspectos “mitológicos” de tal estória. Andrade toca em outros aspectos como um possível autoritarismo por parte dos dirigentes da UDV, como parte mesma da estrutura de seus rituais. Outro ponto que motivou o protesto da UDV foi o fato de Andrade comentar uma postura que é considerada “senso comum” por parte da maioria dos Mestres, que é a inclusão dos fundadores das outras religiões que utilizam a ayahuasca dentro da categoria de “Mestres de Curiosidade”, o que na UDV seria um título pejorativo. Andrade aborda ainda a questão das rupturas ocorridas dentro da UDV. Isso é algo explícito, e Andrade cita outros centro que não estariam mais ligados à direção central da União do Vegetal em Brasília. Surpreendentemente esta mesma direção central nega veementemente que tais “rachas” possam ter ocorrido. Por último, o que me parece mais grave dentro deste universo algo peculiar, é a acusação de que Andrade não teria autorização para divulgar dados sobre a UDV. Ora, Andrade publicou em 1995 uma dissertação de mestrado sobre esta entidade. Durante a elaboração desta dissertação, ele teria recebido uma “autorização verbal” para fazer uso de tais informações, uma vez que os representantes da UDV teriam se negado a assinar um documento, alegando, de acordo com Andrade, num documento elaborado por ele contra o protesto da UDV e enviado a alguns dos demais autores da coletânea, que para eles a UDV a “palavra” era “sagrada”, e uma vez dada, tinha mais valor que documentos escritos... Pesquisas não aliadas à uma postura crítica se transformam em meros relatos; o pesquisador não deve ser porta voz da instituição, embora deva respeitar seus preceitos éticos. Apenas aí reside a possibilidade de construção de um conhecimento legítimo.
Balzer toca em outro ponto bastante sensível, que teria sido uma tentativa equivocada de inserção do Santo Daime na Alemanha. A estratégia adotada foi optar por uma rota que este autor denominou de “mercado das religiões” na Alemanha. Aqui o perigo é os fins se confundirem com os meios: o movimento expansionista e messiânico típico do Santo Daime poderia acabar por ser confundido com uma mera oferta de um produto. Isto contribuiria para denegrir a imagem do grupo.
Há no livro momentos de pura instrospecção, feitos através de relatos em “primeira mão”, onde o pesquisador se deixa conduzir pela própria experiência, e se observa a si mesmo (ver Franco & Conceição, e Dias Jr.). Tal postura é inevitável ao se tratar com o tema relacionado aos psicoativos de uma forma geral, e isso pode aparecer com maior ou menor intensidade nos textos produzidos, mas o chá acaba sempre por exercer sua influência sobre o pesquisador, que ao final de um processo de pesquisa, tem a (por vezes árdua) tarefa de retornar ao universo acadêmico para relatar e pensar sobre o que vivenciou.
Há alguns problemas no livro também. Alguns artigos, como o de Gentil & Gentil acabam por assumir uma postura de meros relatos, por faltar o tal senso crítico a que me referi acima. Contudo, esta é uma forma de “dar voz aos participantes”: o artigo acaba por servir mais como uma fonte de dados “em primeira mão” sobre a UDV do que uma análise sobre a mesma. Outros artigos, como Luna e Monteiro da Silva, dicutem temas importantes – a questão do antropomorfismo e da troca de forma entre seres distintos em Luna, e a influência das religiões de origem africana em Monteiro da Silva. Contudo, acabam por se perder em uma “erudição” desnecessária, gerando notas longas e muitas vezes desconectadas do texto em questão. Isso acaba por dificultar a leitura, além de diluir o tema central do artigo em observações desconexas.
Um outro ponto que surge como problemático, e que ao que parece ainda não foi atingido um consenso, gira em torno do uso do conceito de “alucinógeno”. Vários já foram os textos onde foi demonstrada a inadequação deste conceito no que diz respeito ao estudo de psicoativos de uma forma geral (MacRae e Pelaez discutem brevemente este assunto), e alguns dos autores preferem se manter à margem desta importante discussão.
Bioquímica, fisiologia e cultura são aspectos essenciais ao se trabalhar com a ayahuasca, seja sob qual perspectiva for – e todos estes aspectos são ampla e consistentemente cobertos pelo livro. Contudo, a “força” da experiência da ayahuasca reside em outro domínio: o espiritual. O campo onde tais aspectos poderiam ser tratados de forma mais contundente seria o que envolve os estudos da consciência. Aqui haveria a transcendência das formas como o chá é utilizado, e talvez pudéssemos perceber mais claramente a articulação entre estas diversas formas. Há o risco de tais estudos se perderem em generalizações desmedidas e juízos de valor, mas aqui entra em cena exatamente o profícuo material disponibilizado no livro. Como faces distintas de uma mesma moeda, “universalização” e “relativização” estão intimamente ligadas, e deveriam se amparar mutuamente. Apenas dois artigos enveredam por este caminho, Shanon, de forma mais contundente, e um pouco mais superficialmente Pelaez.
Me aliando à Shanon, eu citaria como exemplo os elementos universais que acompanham as visões que os participantes obtém sob o efeito da bebida. Seria possível encontrarmos aqui uma ligação bastante óbvia com os Arquétipos Junguianos, mas como Shanon mesmo ressalta, haveriam também diferenças. Outros elementos como a capacidade de transformação e os insights filosóficos/existenciais, por exemplo, recebem uma forma cultural, mas seriam elementos constantes nas experiências com a ayahuasca, pertencentes ao reino transpessoal, no sentido de ir além da “persona”. Durante a experiência a persona seria diluída e transformada, havendo então a possibilidade de o indivíduo se perceber a si mesmo a partir de novos ângulos. Assim, os eventos que durante explicações e relatos receberia uma formatação cultural, durante a experiência em si poderia estar relacionada a elementos universais da mente humana. Dentro de uma linguagem místico-esotérica, eu poderia dizer que tais universais seriam trazidos à consciência do usuário pela “energia” do chá, num processo de revelação, onde então a pessoa morreria, para que um novo indivíduo renascesse.
Enfim, o livro é uma
contribuição importante para vários assuntos que dizem respeito à antropologia
como um todo.
Publicado originalmente em: Campos, 4, 211-217. Curitiba, 2003.
[1] Mestre em
Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, aluno de
doutorado em Ciências Humanas em Saybrook.