voltar para Página InicialPrefácio por Oscar Calávia Saez

Prefácio por Oscar Calávia Saez

Prefácio do livro Religiões ayahuasqueiras: um balanço bibliográfico

 

A ayahuasca merece os rios de tinta que há algum tempo faz correr. Convidado a acrescentar umas palavras iniciais a este volume, pouco teria a fazer senão confirmar o prognóstico que os seus autores oferecem: ele está fadado a ficar obsoleto em pouco tempo, e em boa parte será graças às informações que ele mesmo oferece a todos os interessados no tema. Estes são muitos, e variados: etnólogos, historiadores e antropólogos da religião, especialistas em saúde, entusiastas das artes visionárias, ou devotos de alguma das religiões que fazem da ayahuasca o seu sacramento central. Este volume faz de um agregado disperso um conjunto com fronteiras e tendências visíveis, permite traçar um estado da arte, encontrar novos rumos nos rios de tinta.

Mas devo dizer algo mais sobre o único segmento desse campo em que, pela minha experiência profissional, posso reivindicar uma mínima competência: a ayahuasca no contexto indígena, que é, nem precisa esclarecer, o seu contexto original. Esse assunto – excetuando algumas referências esparsas -, está ausente da bibliografia aqui apresentada. O que poderia ser entendido como uma limitação inconveniente talvez seja, antes, um limite necessário. Uma bibliografia sobre a ayahuasca no contexto indígena deveria incluir provavelmente toda a literatura – não escassa -, produzida sobre a Amazônia Ocidental indígena, e talvez de um número significativo de estudos sobre outras regiões das Terras Baixas sul-americanas, já que a ayahuasca tem estendido seu raio de ação a pontos tão distantes como as aldeias Guarani do litoral de Santa Catarina. Mas, sobretudo, seria uma obra a parte: este prefácio contribui a preencher de um modo muito parcial e sintético uma lacuna, mas também diz algo sobre a forma que essa lacuna contribui a dar ao conjunto.

O que diferencia a ayahuasca ameríndia do universo surgido a partir dela é, em primeiro lugar, sua indefinição. Tal como é encontrada longe das aldeias indígenas, a ayahuasca significa religião, seja o que for que isso signifique. Legal ou clandestina, salvadora ou perigosa, primitiva ou fruto da Nova Era, mas religião. No contexto indígena é muito mais difícil dizer o que a ayahuasca é. Fazer dela o centro de uma religião indígena seria muito pouco, e em muitos casos totalmente falso. Não faltam os lugares em que ela é tratada de um modo parecido a como o farão as religiões ayahuasqueiras: a beberagem é (ou foi) o elemento central de rituais claves na vida dos grupos, um sacramento relevante para um coletivo, ou ao menos matéria dos especialistas que têm em suas mãos a função de regular a boa ordem. Em muitos outros casos, ela organiza um sistema terapêutico que só com abuso do termo poderia se entender como religioso. A ayahuasca pode desempenhar aí um papel de remédio, exercendo sua ação diretamente sobre o corpo do paciente; mas também adquirir um valor propedêutico, tornando-se um instrumento de diagnóstico que, nas tarefas de buscar a fonte da doença, ou entrar em contato com os seus agentes, serve ao curador antes que ao paciente. Ou pode tornar-se o centro de todo uma metodologia de formação ou de pesquisa do xamã: é tomando ayahuasca que o aprendiz aprende os cantos, conhece e se alia aos seus espíritos auxiliares, ou torna o seu corpo, empapado da substância amarga da beberagem, um corpo verdadeiramente apto para as obras xamânicas. Muito longe do uso terapêutico, e portanto da sua face mais divulgada, é possível encontrar também a ayahuasca, como bebida inebriante, em festas de canto e dança onde a fruição sensorial, a sedução dos grupos de homens e mulheres confrontados, prevalece sobre qualquer outro objetivo. Não deve surpreender que o álcool, a beberagem dos brancos, a substância antagonista da ayahuasca, oposta em seus atributos e incompatível com ela, possa ser também às vezes a sua sombra, a herdeira de toda uma vertente maldita da poção sagrada. A ayahuasca tem, com efeito, o seu lado obscuro que se manifesta às vezes em sistemas de agressão: a ayahuasca pode ser o veículo pelo qual os espíritos dos parentes mortos comunicam aos vivos o seu desejo de vingança, e também o marco dessa retribuição violenta. Sentar junto com um grupo de recém chegados para beber ayahuasca e cantar com ela podia ser em tempos uma ocasião perigosa, lembrada em ausências ou cicatrizes.

Em muitos casos a ayahuasca aparece como mais um elemento, ainda que importante, dentro de um sistema de plantas – ao lado do tabaco, a pimenta, a datura ou a seiva da samaúma -, compondo um sistema simbólico paralelo ao da cozinha, em que a ayahuasca ocupa via de regra o pólo do cozido, aquele que encarna um papel civilizador. Mas alternativamente ela substitui todo esse complexo, assumindo em solitário esse conjunto de funções, ou reduzindo-o, como agente de um processo civilizatório sui generis: a ayahuasca, mais do que uma tradição secular pode ser o signo de uma reforma do xamanismo indígena. De fato, seria possível entender a ayahuasca como o fio condutor de uma certa ecumene cultural que se estende por boa parte da Amazônia Ocidental: cantos, grafismos, mitos que, através de suas diferenças, encontram um denominador comum, por exemplo, na anaconda, cuja constante associação com a ayahuasca nada tem de trivial. Se localmente a ayahuasca serve à comunicação com os espíritos, na região em seu conjunto ela comunica culturas, traduz. Em outro sentido, só aparentemente oposto, a ayahuasca age nas sociocosmologias indígenas como uma clave alterizadora1, algo assim como o espelho na tradição ocidental. Se o espelho nos devolve, invertida, nossa própria imagem, a ayahuasca abre a porta de um universo em que as mesmas imagens se apresentam com signos trocados, onde as anacondas, que vêem a si mesmas como humanas, tomam também ayahuasca e podem, quem sabe, nos ver por sua vez na figura de anacondas. Uma inversão não das imagens, mas dos pontos de vista, válida para entender os outros, sejam eles espíritos, mortos ou estrangeiros.

Isto nos introduz a um outro aspecto que é necessário destacar, por muito óbvio que pareça. A ayahuasca é o centro de toda uma prática e uma teoria da visão. Evitemos entender isto de um modo excessivamente fácil. Pode-se cair na tentação de tomar as visões da ayahuasca como um atalho para explicar a cosmologia indígena, fazendo desta um epifenômeno das propriedades farmacológicas daquela. Ou quem sabe, indo além pelo mesmo caminho, fazer da ayahuasca o órgão de uma visão complementar, que ativa outras potências perceptivas. A ayahuasca pode ser muito mais do que isso, e representar um equivalente do que a pintura perspectiva foi para a tradição européia: um modo de articular percepções e noção de realidade. A noção de perspectiva na plástica ocidental serviu em primeiro lugar para mostrar a limitação dos sentidos: o olho engana, e esse engano pode ser domesticado e revertido pelo artista, como na pintura ilusionista – o trompe l’oeil -, que sugere profundidades em superfícies planas ou presenças onde há apenas representações. Depois, numa espécie de trompe l’oeil filosófico, postulou, para além da ilusão, uma realidade como ela é, cujo denominador comum seria a extensão, o conjunto dos atributos mensuráveis. A perspectiva, a rigor a perspectiva naturalista, foi um dos esteios em que se apoiou o sucesso epistêmico da natureza. A ayahuasca pode fundamentar uma outra perspectiva, uma outra teoria da visão, e da visão central, não de uma dimensão complementar – grandiosa que seja -, à da visão quotidiana. Central, porque é nessa visão, e não na visão quotidiana, que se funda a ontologia, de um modo semelhante a como, na ciência moderna, os postulados sobre o mundo têm deixado de se basear na visão comum, para servir-se de microscópios, telescópios, espectroscópios e outros instrumentos supra-oculares. Não é este lugar para caracterizar essa visão, mas podem se sugerir alguns dos seus lemas: o contraste entre fundo e forma em lugar da alternativa entre essência e aparência, a aproximação e o distanciamento em lugar do velar e o revelar, o ver subordinado ao mirar. É difícil saber – os textos aqui catalogados devem fornecer boas pistas -, o quanto dessa teoria do mirar tem passado do mundo indígena para as religiões ayahuasqueiras. Sempre paira uma certa dúvida sobre as iniciativas religiosas ou literárias que reivindicam uma origem indígena, como se o pensamento indígena não pudesse gerar, fora da selva, nada além de evocações ocas. Não creio que as religiões ayahuasqueiras, por muito empapadas que estejam de uma metafísica em último termo cristã, sejam infensas a essa lógica do sensível que a ayahuasca pode potencializar de um modo extraordinário.

Se os índios têm sido percebidos secularmente como objetos da missão cristã, a ayahuasca fornece o melhor exemplo de uma missão inversa. Não porque os índios tenham se empenhado num labor proselitista, embora os não poucos xamãs que deixam a aldeia para exercer sua ciência entre os brancos ofereçam algumas similitudes interessantes com o difusor do evangelho que efetuou o trajeto inverso. Muito pode se dizer do que toda essa expansão da ayahuasca tem significado para os índios. Mas prefiro pensar aqui na ayahuasca como um caso especialmente expressivo de criação indígena adotada depois por outros povos e cujas virtualidades são suficientes para que os acadêmicos a levem a sério. Como os autores sublinham na sua apresentação, as religiões ayahuasqueiras não são epifenômenos de um agente psicodélico, por poderoso e peculiar que este seja. São variações de um tema cultural indígena, que realçam mais a sua potência quanto mais se estendem longe dele. As obras percorridas neste volume dão, desse diálogo nem sempre explícito, uma excelente amostra.

Oscar Calávia Saez

Professor do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina

Florianópolis, julho de 2007