As “religiões ayahuasqueiras brasileiras,” como passaram a ser conhecidas desde a publicação da importante coleção editada por Labate e Araújo (2002), são um conglomerado de associações que surgiram na segunda metade do século 20, a partir da experiência brasileira do boom da borracha na Amazônia. Desde os anos 70, esses grupos se tornaram cada vez mais presentes no discurso nacional brasileiro bem como no discurso internacional, uma vez que algumas delas se expandiram para além da Amazônia. O discurso sobre esses grupos tem focalizado duas noções conexas do ponto de vista temático. A mais importante dessas é a ingestão da ayahuasca, um “chá” psicoativo preparado a partir de duas plantas nativas amplamente usadas em contextos indígenas e de emigrantes na Amazônia e que é fortemente marcado por suas origens culturais e geográficas. A outra noção, especialmente proeminente no caso do Santo Daime (o mais amplamente conhecido desses grupos), são os aspectos contraculturais e New Age da identidade do grupo. O foco dessa tese recai sobre o Alto Santo, o nome pelo qual o primeiro centro daimista do Brasil é conhecido. Baseia-se em quinze meses de trabalho de campo no Alto Santo e na região entre 2002 e 2007. O Alto Santo localiza-se em um bairro rural da periferia de Rio Branco, capital do estado do Acre, que faz fronteira com o Peru e Bolívia, na porção mais ocidental da Amazônia brasileira. Os daimistas do Alto Santo consideram a adoção do Santo Daime por brasileiros da contracultura, normalmente da classe média do sudeste, como uma usurpação que perturba a rede de negociações locais que foram feitas pelo fundador do centro, Raimundo Irineu Serra, desde o início de seu trabalho com a ayahuasca na década de 1930 até sua morte em 1971. De especial preocupação para eles, dada a ênfase daimista na reforma moral e na participação cívica, é o perigo de a ayahuasca ser profanada por meio de uma associação com drogas da contracultura. (A ayahuasca contém DMT, uma substância proibida de acordo com a legislação internacional). Os três primeiros capítulos da tese analisam o processo pelo qual a ayahuasca, rebatizada de “Daime”, foi simbolicamente trazida da floresta para a cidade, transformada para uso “civilizado” e incorporada na “casa” de Irineu Serra. Este fato, argumento, foi um evento novo na história do uso emigrante da ayahuasca na Amazônia. Conforme demonstra a tese, o estabelecimento bem sucedido da “Casa do Mestre” envolveu múltiplas mediações por Irineu Serra, como um “grande homem” brasileiro, das “suas” relações pessoais com autoridades locais, associações esotéricas internacionais, a nação brasileira de modo geral e os poderes (cristianizados) espirituais da floresta. Analiso esse processo basicamente por meio do modelo de Roberto Da Matta de um “sistema ritual” brasileiro, no qual a casa, hierarquicamente ordenada, é a forma mais importante da sociabilidade brasileira, complementada pelo espaço despersonalizado da “rua” e do “outro mundo” transcendente. Os dois capítulos finais lidam como o ritual do Alto Santo, mostrando como ele é moldado pelo discurso sobre o advento da Doutrina de Irineu Serra na sociedade acreana. O processo de feitio que produz o Daime é analisado pela sua significância material para a prática do Alto Santo, bem como pelo que contribui, do ponto de vista discursivo, como o condutor por meio do qual o poder da floresta é traduzido para o ambiente de culto para uso no “trabalho espiritual” daimista. Esse trabalho espiritual, concebido de acordo como ideias esotéricas a respeito de intencionalidade e comunicação vibracional à distância, torna-se mais visível no desempenho coletivo dos corpos de hinos nos dias das festas católicas. O capítulo final examina o discurso sobre os hinos, usando o conceito de “entextualização” ao mostrar como eles, juntamente com os traços formais dos próprios hinos, fundamentam a experiência ritual daimista do canto dos hinos como uma confrontação, na presença da lei divina, de nossas desventuras morais. “In the Master’s House”: History, discourse, and ritual in Acre, Brazil. University of Virginia, 2014 Matthew Meyer
The “Brazilian ayahuasca religions,” as they have become known since the publication of the important collection edited by Labate and Araújo (2002), are a congeries of associations that emerged, in the mid‐to‐late 20th century, from the Brazilian experience of the Amazonian rubber boom. Since the 1970s, these groups have become increasingly present in nationwide Brazilian and international discourse as some of them expanded beyond Amazonia. Discourse about these groups has focused on two thematically linked notions. The foremost of these is the ingestion of ayahuasca, a psychoactive “tea” decocted from two native plants that is widely used in indigenous and emigrant contexts in the Amazon, and which is strongly marked by its cultural and geographic origins. The other notion, particularly prominent in the case of Santo Daime (the most widely known of these groups), is the New Age and countercultural aspects of the groups’ identity. The focus of this dissertation is on Alto Santo, the name by which the first Daimista center in Brazil is known. It is based on 15 months of fieldwork at Alto Santo and in the region between 2002 and 2007. Alto Santo is located in a rural neighborhood on the periphery of Rio Branco, capital of Acre state, which borders Peru and Bolivia in the westernmost portion of Amazonian Brazil. Daimistas at Alto Santo regard the adoption of Santo Daime by countercultural, usually middle‐class southern Brazilians as a usurpation that upset the web of local negotiations that were navigated by the center’s founder, Raimundo Irineu Serra, from the beginning of his work with ayahuasca in the 1930s to his death in 1971. Of especial concern to them, given the Daimista emphasis on moral reform and civic participation, is the danger of ayahuasca’s being profaned by association with countercultural drugs. (Ayahuasca contains DMT, a “scheduled” substance under international law.)
The dissertation’s first three chapters analyze the process by which ayahuasca, rebaptized as “Daime,” was symbolically brought from the forest to the town, made fitting for “civilized” use, and incorporated within Irineu Serra’s “house” (casa). This, I argue, was a novel event in the history of emigrant ayahuasca use in Amazonia. As the dissertation shows, the successful establishment of the “Master’s House” involved multiple mediations by Irineu Serra, as a Brazilian “big man,” of “his” people’s relations with local officials, international esoteric associations, the Brazilian nation at large, and the (Christianized) spiritual powers of the forest. I view this process primarily through the lens of Roberto Da Matta’s model of a Brazilian “ritual system,” in which the hierarchically‐ordered casa is the preeminent form of Brazilian sociality, complemented by the depersonalized space of the “street” (rua) and the transcendent “other world” (outro mundo). The final two chapters treat Alto Santo ritual, showing how it is framed by discourse about the advent of Irineu Serra’s Doutrina (“doctrine”) in Acrean society. The feitio (“making”) process that produces Daime is analyzed for its material significance to Alto Santo practice, as well as for what it contributes discursively, as the conduit by which the forest’s power is translated to the worship hall for use in Daimista “spiritual work.” This spiritual work, conceived in accordance with esotericist ideas about intentionality and vibrational communication at a distance, is most visible in the collective performance of corpuses of hymns on Catholic feast days. The final chapter examines discourse about the hymns, using the concept of “entextualization” in showing how it, together with the formal features of the hymns themselves, supports Daimista ritual experience of hymn‐singing as a confrontation, in the presence of divine law, with one’s moral misadventures.
http://www.neip.info/downloads/M_House_A_Santo_2014.pdf